A Reforma Evangélica: Um desafio para os Moçambicanos

A Reforma Evangélica: Um desafio para os Moçambicanos

Decorria o período conhecido como idade das trevas, e a Igreja Católica Romana manifestava, arrogantemente, seu desvio de carácter moral e, sobretudo, teológico. Imerso no fétido poço da ignorância e negando ser socorrido por Deus através das reflexões teológicas elaboradas por homens iluminados pelo Espírito Santo, os líderes católicos, através de seus ensinamentos, conduziam multidões à perdição eterna.

À semelhança dos fariseus, eles eram como cegos tentando guiar outros cegos; eles não entravam no reino dos céus e proibiam a quem desejasse. No afã de continuar a deter o poder eclesiástico e não ter que prestar satisfação ao povo por causa de suas tradições, que eram, em grande parte, contrárias aos princípios bíblicos, foi decidido em um concílio realizado em 1229, denominado concílio de Tolosa, que os leigos não deveriam ler a Bíblia, ficando assim dependentes da leitura e interpretação dada pela igreja. Esta decisão, contudo, não correspondia ao desejo de Deus de ver a Sua palavra transmitida com clareza. Nesse contexto, o descrédito da Igreja aumentava de tal forma que até mesmo parte do clero já manifestava um elevado grau de insatisfação.

Um dos insatisfeitos era Martinho Lutero, que, em 1510, ao visitar Roma, tomou conhecimento dos abusos flagrantes e das hipocrisias dissimuladas dos sacerdotes. Desiludiu-se com a corrupção presente na Igreja Romana e perdeu o entusiasmo pelas peregrinações para venerar relíquias religiosas.

O então legalista agostiniano sabia que um Deus santo exigia perfeição moral e, por isso, empenhava-se arduamente em descobrir o que poderia fazer para ser aceite por Ele. Inicialmente, decidiu procurar a salvação divina através da prática de boas obras, mas, ao perceber que nunca faria o suficiente para merecer a aprovação de Deus, perdeu a esperança de alcançar a salvação.

Entretanto, Deus, em sua misericórdia, conduziu providencialmente Lutero ao estudo das Escrituras e, ao iluminar o seu entendimento, revelou-lhe que Deus salva os pecadores pela sua graça, mediante a fé.

Com essas verdades claras em mente, Lutero deparou-se com uma situação desconcertante na Alemanha. João Tetzel, autorizado pelo Papa Leão X, que procurava angariar fundos para a construção da Basílica de São Pedro, vendia indulgências àqueles que faziam doações. A venda de indulgências consistia, por assim dizer, na comercialização de um bilhete que supostamente garantia a entrada no céu, não apenas aos vivos, mas também aos mortos que se encontravam no purgatório.

A citação mais famosa de Tetzel foi: “Assim que a moeda tilintar no cofre, uma alma é liberta do purgatório”.[1]

Lutero ficou profundamente indignado e, em 31 de outubro de 1517, redigiu noventa e cinco proposições, historicamente conhecidas como as “Noventa e Cinco Teses”, nas quais criticava a prática das indulgências. Ele afixou essas teses na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg, propondo um debate público sobre a venda de indulgências. Sem o seu conhecimento, os seus alunos levaram o documento a um impressor, que o publicou.

Diante disso, Lutero foi acusado de herege, principalmente pelo facto de suas teses darem origem a diversas questões sobre o Papa: “por que ele não esvazia o purgatório por amor em vez de dinheiro? Por que não constrói a basílica de São Pedro com dinheiro próprio?”. As teses também ressaltavam o evangelho como o verdadeiro tesouro da Igreja.[2]

É importante notar que, como bem diz Lindberg (2017), os quatro fundamentos do papado, essencialmente formulados por Prierias[3] antes das “Noventa e cinco teses”, terminavam o diálogo mesmo antes de tê-lo começado. Esses fundamentos declaravam que “o Papa é praticamente o cabeça da Igreja, embora de forma diferente da de Cristo”; que “o Papa não pode errar quando, em sua capacidade papal, chega a uma decisão”; que “aquele que não adere ao ensino da Igreja Romana e do Papa como regra infalível de fé, da qual mesmo a Escritura Sagrada deriva poder e autoridade, é um herege”. Note-se como as Escrituras não eram consideradas a fonte de autoridade para o estabelecimento de doutrinas sólidas para o povo de Deus.

Depois de ter sido chamado a se retratar várias vezes — que se arrependesse e revogasse seu erro e prometesse não mais ensiná-lo outra vez — , Lutero foi exigido por Carlos V, Imperador do Sagrado Império Romano, que comparecesse diante da Dieta Imperial em Worms a fim de retratar-se oficialmente. Entrementes, quando chamado a retratar-se, respondeu:

          A não ser que eu esteja convencido pelo testemunho das Escrituras ou pela razão mais clara, (porque não confio em Papas e concílios sem tal testemunho, pois é bem sabido que eles têm errado e se contradizem), estou atado pelas Escrituras que citei, e minha consciência está cativa pela Palavra de Deus. Não posso me retratar e nem o farei, pois não é seguro nem direito ir contra a consciência. Não posso fazer outra coisa. Aqui eu permaneço; que Deus me ajude. Amém.[4]

O que podemos aprender com o extrato acima?

  1. Precisamos, em Moçambique, de homens que, à semelhança de Lutero, não se conformem com os erros das igrejas.

Através deste material, muitos passaram a compreender corretamente as verdades bíblicas, tornando-se mais aptos a discernir os erros que infestaram a igreja moçambicana. No entanto, apesar dessa capacidade, o pecado do conformismo ainda pesa sobre a grande maioria. Muitos permanecem conformados com o ritualismo vazio das suas igrejas, que tem sido progressivamente exaltado e até canonizado; outros mostram-se apáticos face à infalibilidade atribuída a certos líderes; e há ainda quem tolere a abordagem legalista à salvação, amplamente pregada em muitos púlpitos. Lutero, com lágrimas copiosas, lamentaria profundamente este facto!

  1. É imperativo que, em Moçambique, surjam homens que, à semelhança de Lutero, convoquem os líderes cristãos para um debate doutrinário, fundamentado nas sagradas escrituras.

Indignado com a prática da venda de indulgências, Lutero redigiu as “Noventa e Cinco Teses”, convocando os intelectuais para um debate acerca das indulgências. Acredito que o nosso procedimento deveria assemelhar-se ao de Lutero. É evidente que não estou a propor que cada um de nós elabore teses contra os maus procedimentos de sua igreja e as afixe na porta; antes, devemos convidar os nossos irmãos, especialmente os líderes de nossas igrejas locais, a refletirem biblicamente sobre a sua percepção doutrinária e o que as Escrituras ensinam a esse respeito. E que tal reflexão seja realizada com uma boa dose de humildade.

É imprescindível que, em Moçambique, surjam homens que, à semelhança de Lutero, mesmo diante de pressão, risco de excomunhão ou morte, se mantenham firmes ao lado da verdade.

Que fazer quando, ao expormos a verdade, conforme revelada nas Escrituras, somos ameaçados com excomunhão, desvinculação denominacional ou desligamento em uma convenção? Como agir se, ao apresentarmos as Escrituras, perdermos o apoio e a amizade de muitos irmãos? Alguns, de forma imprudente, poderão afirmar que o sensato seria curvar a cabeça diante dos erros. Infelizmente, muitos de nós procedemos assim, não é verdade? Muitos de nós permanecemos inexpressivos nas igrejas, temendo ser mal interpretados pelos homens. Que postura lamentável e pecaminosa! Não foi assim que Lutero agiu; não foi assim que o seu Mestre, Jesus Cristo, agiu; e não devemos, igualmente, agir dessa maneira?

Bibliografia

[1] LAWSON, S. A Heroica Ousadia de Martinho Lutero. São Paulo: Fiel. 2013. P. 28.

[2] LINDBERG, C. História da reforma. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017. P. 112.

[3] Foi um teólogo papal. Seu nome era Silvestro Mazzolini, conhecido como Prierias. Lutero o descreveu como o primeiro que se levantara contra ele “chiando como um rato que logo iria perecer”.

[4] LAWSON, S. A Heroica Ousadia de Martinho Lutero. São Paulo: Fiel. 2013. P. 37.

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