Kutchinga: é bíblico?

Kutchinga: é bíblico?

Através desta breve série de textos, proponho-me a examinar, sob a ótica das Escrituras, diversos aspectos das Religiões Tradicionais Africanas, os quais estão intrinsecamente ligados à cultura africana. Como é conhecido, “para o africano, a religião não é apenas um conjunto de crenças, mas uma forma de vida, a base da cultura, identidade e valores morais. A religião é uma parte essencial da tradição que ajuda a promover tanto a estabilidade social como a inovação criativa”.[1] As culturas são essencialmente enraizadas na religião, e a cultura africana não foge a essa realidade.

Lembremos, então, antes de qualquer coisa, que a cultura consiste em padrões, explícitos e implícitos, de comportamento adquirido e transmitido por símbolos, constituindo a realização distintiva de grupos humanos, inclusive sua expressão em artefactos. O núcleo essencial da cultura consiste em ideias tradicionais (ou seja, derivadas e selecionadas ao longo da história) e, especialmente, nos valores a elas associados. Sistemas culturais podem ser considerados, de um lado, produtos da ação e, de outro, elementos condicionantes de ação posterior.[2] De forma mais concisa, podemos definir cultura como o conjunto de valores, crenças e práticas de uma sociedade em particular, englobando arte, religião, ética, costumes, modos de lazer, organização social, entre outros.

 A cultura está longe de ser neutra. Ela espelha a condição moral e espiritual das pessoas que a compõem, ou seja, uma mistura de coisas boas, decorrentes da imagem de Deus no ser humano e da graça comum, e coisas pecaminosas, resultantes da depravação e corrupção do coração humano. Toda cultura, portanto, por mais civilizada que seja, traz valores pecaminosos, crenças equivocadas e práticas iníquas que se refletem na arte, música, literatura, cinema, religiões, costumes e tudo mais que a compõe.[3] Isso é um fato reconhecido inclusive entre as culturas africanas. Aqui, na África, encontramos aspectos culturais positivos aos olhos de Deus, como nosso senso de comunidade e respeito pelos mais velhos, entre outros. Entretanto, ao mesmo tempo, há aspectos culturais prejudiciais que, portanto, são condenados pela Palavra de Deus, e é evidente que sua prática é proibida para os cristãos.

Uma das práticas culturais reprovadas pela palavra de Deus é o que chamamos de Kutchinga ou Kupita-Kufa, conhecido em português como Levirato. Se você é um leitor das Escrituras, certamente já se deparou com essa expressão; no entanto, não se engane, pois não se trata exatamente do mesmo conceito observado em nossa cultura.

A palavra “levirato” deriva do latim e significa “irmão do marido”, ou seja, cunhado. Basicamente, a lei do levirato, conforme encontrada nas Escrituras, estipulava que o irmão do marido falecido deveria se casar com a esposa dele e gerar filhos com ela, a fim de que o nome do falecido não fosse apagado em Israel. Nesse caso, o primeiro filho do novo casal seria legalmente considerado filho do falecido, incluindo questões relacionadas à herança.

Dessa forma, é evidente que o propósito da lei do levirato era preservar a linhagem de um homem, protegendo a continuidade de seu nome e herança.  No entanto, existiam algumas condições específicas a serem observadas para a aplicação da lei. O primeiro requisito era “morar juntos”. Isso não exigia que os dois ocupassem a mesma casa, mas apenas que morassem perto um do outro. A esposa, portanto, não era uma desconhecida para o cunhado. O segundo requisito era que o casal (cujo um dos cônjuges era o falecido) não devia ter filhos. Se o casal tivesse filhos, o segundo casamento seria desnecessário, pois o objectivo do mesmo era que continuasse a linhagem do falecido através de filhos. E o último requisito era que o cunhado devia estar disposto a casar-se com a viúva e a ter filhos com ela.[4] Caso o homem se recusasse a se casar, a viúva poderia levar o caso aos anciãos na porta da cidade, onde ele seria persuadido a reconsiderar sua decisão. Se persistisse na recusa, a viúva poderia humilhá-lo publicamente, cuspindo em seu rosto (ou diante dele, conforme Números 12:14) e retirando sua sandália, trazendo vergonha para ele e sua família.

Como mencionado anteriormente, a lei do levirato encontrada nas Escrituras difere das práticas de levirato observadas em nossa sociedade. Você pode se perguntar: qual é essa diferença? Vou explicar.

A lei do levirato na Bíblia tinha como objetivo preservar a linhagem de um homem e sua herança. Por outro lado, o Kutchinga ou Kupita-kufa, frequentemente praticado em nossa sociedade, não tem essencialmente o mesmo propósito. A prática do Kutchinga não visa proteger a linhagem do falecido, uma vez que é realizada mesmo quando o casal já tem filhos – o que tornaria o levirato bíblico desnecessário. Além disso, o Kutchinga envolve rituais de purificação da viúva para afastar infortúnios causados por espíritos dos ancestrais, incluindo práticas de espiritismo. É devido a esse envolvimento com o espiritismo que muitas famílias seguem rigorosamente essas práticas e conseguem convencer as mulheres a se submeterem. É amplamente conhecido que os africanos têm pavor em relação a questões sobrenaturais, especialmente sobre as supostas manifestações da ira dos antepassados sobre suas vidas.

Alguns de vocês podem não estar cientes de que o Kutchinga envolve todos esses elementos, e ainda menos podem imaginar as implicações de se submeter a essas práticas. Submeter-se ao Kutchinga equivale a uma desobediência directa a Deus. Sim! Deus, por meio de Sua palavra, proíbe estritamente a prática do espiritismo em todas as suas formas. Talvez alguém argumente: “Bem, submeter-se ao Kutchinga não significa, necessariamente, praticar o espiritismo, pois não envolve tentativas de comunicação com os mortos”. No entanto, essa justificativa não resolve o problema, pois, mesmo que não haja uma tentativa explícita de comunicação com os mortos, persiste a crença de que os falecidos podem influenciar os assuntos dos vivos, o que revela uma inclinação para o espiritismo.

Outros poderão argumentar: “A recusa em praticar o Kutchinga pode resultar em rejeição por parte da família do falecido marido, e podemos até perder a herança, o que causará sofrimento inimaginável”. É verdade! Sua recusa pode não ser bem vista por seus familiares, que podem rejeitá-la, amaldiçoá-la ou até mesmo agir de forma maliciosa para privá-la da herança do falecido. Mas, pergunto-lhes: não é nossa responsabilidade obedecer a Deus custe o que custar, independentemente das adversidades que possamos enfrentar por isso? Não somos chamados a negar a nós mesmos, a tomar nossa cruz e seguir a Jesus? Não somos chamados a depositar nossa confiança absoluta em Deus, nosso pastor e provedor? Nosso Senhor não disse que aquele que ama mais pai ou mãe do que Ele não é digno de segui-Lo? Portanto, mesmo que enfrentemos rejeição, pobreza ou qualquer outro infortúnio, não devemos, sob nenhuma circunstância, nos afastar da verdade do evangelho.

Contudo, se considerarmos, hipoteticamente, que o Kutchinga praticado em nosso país fosse semelhante à lei do levirato encontrada nas Escrituras, poderíamos, então, afirmar que poderíamos praticá-lo? A resposta é clara: não! Mesmo que o Kutchinga praticado em nossa sociedade se assemelhasse à lei do levirato encontrada na lei de Moisés, não deveríamos adotá-lo, pois não estamos mais sob a vigência da lei. Portanto, não temos a obrigação de cumprir os preceitos da antiga aliança, como a observância dos dias festivos, a dieta religiosa, a circuncisão, ou mesmo os aspectos civis regulamentados para os judeus. Estamos agora sob a graça de Deus, vivendo na era do evangelho, que alcança todos os povos, raças, tribos e nações.

[1] Tshibangu, Tshishiku (1993) Religion and Social Evolution, in: General History ofAfrica, VIII. P. 501

[2] ‘Culture:A CriticaiRe-uiew of Concepts andDefnitions (Nova Iorque: Random House, 1952), p. 357.

[3] Augustus Nicodemus. Quando a Cultura Vira Evangelho.

[4] Idem

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